Pedagogia da Autonomia - Paulo Freire
Parte II
NÃO HÁ DOCÊNCIA SEM DISCÊNCIA
Educadores com Práticas Progressistas X Educadores com Práticas Conservadoras
"A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação Teoria/Prática sem a qual a teoria pode ir virando blábláblá e a prática, ativismo." (p. 30)
Saberes Fundamentais à Prática Educativo-crítica ou Progressista
[...] que o formando, desde o principio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se com sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua produção ou a sua construção. (p. 30)
"Se, na experiência de minha formação, que deve ser permanente, começo por aceitar que o formador é o sujeito em relação a quem me considero o objeto por ele formado, me considero como um paciente que recebe os conhecimentos-conteúdos-acumulados pelo sujeito que sabe e a são a mim transferidos. Nesta forma de compreender e de viver o processo formador, eu, objeto agora, terei a possibilidade, amanhã, de me tornar o falso sujeito da "formação" do futuro objeto de meu ato formador. É preciso que, pelo contrário, desde os começos do processo, vá ficando cada vez mais claro que, embora diferentes entre si, quem forma se forma e re-forma ao formar e quem é formado formase e forma ao ser formado." (p. 31)
É neste sentido que ensinar não é transferir conhecimentos, conteúdos nem formar é ação pela qual um sujeito criador dá forma, estilo ou alma a um corpo indeciso e acomodado. Não há docência sem discência, as duas se explicam e seus sujeitos, apesar das diferenças que os conotam, não se reduzem à condição de objeto, um do outro.
Quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao
aprender. Quem ensina ensina alguma coisa a alguém. (p. 31)
Não temo dizer que inexiste validade do ensino de que não resulta um aprendizado em que o aprendiz não se tornou capaz de recriar ou de refazer o ensinado, em que o ensinado que não foi apreendido não pode realmente aprendido pelo aprendiz. (p. 32)
I. Ensinar exige rigorosidade metódica
O educador democrático não pode negar-se o dever de, na sua prática docente, reforçar
a capacidade crítica do educando, sua curiosidade, sua insubmissão. (p. 33)
"Faz parte das condições em que aprender criticamente é possível e pressuposição por parte dos educandos de que o educador já teve ou continua tendo experiência da produção de certos saberes e que estes não podem a eles, os educandos, ser simplesmente transferidos. Pelo contrário, nas condições de verdadeira aprendizagem os educandos vão se transformando em reais sujeitos da construção e da reconstrução do saber ensinando, ao lado do educador, igualmente sujeito do processo." (p. 34)
"[...] tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos mas
também ensinar a pensar certo. Aí a impossibilidade de vir a tornar-se um professor
crítico se, mecanicamente memorizador, é muito mais um repetidor cadenciado de
frases e de idéias inertes do que um desafiador." (p. 34)
2. Ensinar exige pesquisa
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino. Esses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso para conhecer e o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (p. 36)
Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. (p. 37)
3 Ensinar exige respeito aos saberes dos educandos
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os da classes populares, chegam a ela - saberes socialmente construídos na prática comunitária - mas também, como há mais de trinta anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.
4 Ensinar exige criticidade
Não há para mim, na diferença e na "distancia" entre a ingenuidade e a criticidade, entre o saber de pura experiência feito e o que resulta dos procedimentos metodicamente rigorosos, uma ruptura, mas uma superação. A superação e não a ruptura se dá na medida em que a curiosidade ingênua, sem deixar de ser curiosidade, pelo contrário, continuando a ser curiosidade, se criticiza. Ao criticizar-se, tornando-se então, permito-me repetir, curiosidade epistemológica, metodicamente "rigorizando-se" na sua aproximação ao objeto, conota-se seus achados de maior exatidão. (p. 38)
A curiosidade como inquietação indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere e alerta faz parte integrante do fenômeno vital. [...] (p. 39)
[...] uma das tarefas precípuas da prática educativa-progressista é exatamente o desenvolvimento da curiosidade crítica, insatisfeita, indócil. [...] (p. 39)
[...] E não vai nesta consideração nenhuma arrancada falsamente humanista de negação da tecnologia e da ciência. Pelo contrario é consideração de quem, de um lado, não diviniza a tecnologia, mas, de outro, não há diaboliza. De quem a olha ou mesmo a espreita de forma criticamente curiosa. (p. 39)
5 - Ensinar exige estética e ética
A necessária promoção da ingenuidade a criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. [...] (p. 39)Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso, nos fizemos seres éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu caráter formador. (p. 40)
Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perigosa de pensar errado.
Pensar certo, pelo contrario, demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos fatos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo.
Do ponto de vista do pensador, não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. (p. 40-41)
6 Ensinar exige a corporeificação das palavras pelo exemplo
Não há pensar certo fora de uma prática testemunhal que o re-diz em lugar de desdizê-lo. Não é possível ao professor pensar que pensa certo mas ao mesmo tempo pergunta ao aluno se "com quem está falando". (p. 41)
O clima de quem pensa certo é o de quem busca seriamente a segurança na argumentação, é o de quem, discordando do seu oponente não tem por que contra ele ou contra ela nutrir uma raiva desmedida, bem maior, as vezes, do que a razão mesma da discordância. (p. 41)
7 Ensinar exige risco, aceitação do novo e rejeição a qualquer forma de discriminação
É próprio do pensar certo a disponibilidade ao risco, a aceitação do novo que não pode ser negado ou acolhido só porque é novo, assim como o critério de recusa ao velho não é apenas o cronológico. O velho que preserva sua validade ou que encarna uma tradição ou marca uma presença no tempo continua novo.
Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida qualquer forma de discriminação. A prática reconceituosa de raça, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. (p. 42)
Pensar e fazer errado, pelo visto, não têm mesmo nada que ver com a humildade que o pensar certo exige. Não têm nada que ver com o bom senso que regula nossos exageros e evita as nossas caminhadas até o ridículo e a insensatez. (p. 43)
Não há por isso mesmo pensar sem entendimento e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferindo mas co-participando.
grande tarefa do sujeito que pensa certo não é transferir, depositar, oferecer, doar ao outro, tomado como paciente de seu pensar, a inteligibilidade das coisas, dos fatos, dos conceitos. A tarefa coerente do educador que pensa certo é, exercendo como ser humano a irrecusável prática de inteligir, desafiar o educando com quem se comunica e a quem comunica, produzir sua compreensão do que vem sendo comunicado. (p. 44)
[...] O pensar certo por isso é dialógico e não polêmico. (p. 44)
8 Ensinar exige reflexão crítica sobre a prática
A prática docente crítica, implicante do pensar certo, envolve o movimento dinâmico, dialético, entre o fazer e o pensar sobre o fazer. (p. 44)
Por isso, é fundamental que, na prática da formação docente, o aprendiz de educador assuma que o indispensável pensar certo não é presente dos deuses nem se acha nos guias de professores que iluminados intelectuais escrevem desde o centro do poder, mas, pelo contrário, o pensar certo que supera o ingênuo tem que ser produzido pelo próprio aprendiz em comunhão com o professor formador. (p. 45)
Está errada a educação que não reconhece na justa raiva, na raiva que protesta contra as in justiças, contra a deslealdade, contra o desamor, contra a exploração e a violência um papel altamente formador. O que a raiva não pode é, perdendo os limites que a confirmam, perder-se em raivosidade que corre sempre o risco de se alongar em odiosidade. (p. 46)
9 Ensinar exige o reconhecimento e a assunção da identidade cultural
Reflexão sobre a assunção.
[...] com assunção eu quero sobretudo me referir ao conhecimento cabal que obtive do fumar e de suas conseqüências.
Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos, em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora, ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.
A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. Tem que ver diretamente com a assunção de nos por nós mesmos. É isso que o puro treinamento do professor não faz, perdendo-se e perdendo-o na estreita e pragmática visão do processo.
A questão da identidade cultural, de que fazem parte a dimensão individual e a de classe dos educandos cujo respeito é absolutamente fundamental na prática educativa progressista, é problema que não pode ser desprezado. (p. 47-48)
[...] A solidariedade social e política de que precisamos para construir a sociedade menos feia e menos arestosa, em que podemos ser mais nós mesmos, tem a formação democrática ema prática de real importância. A aprendizagem da assunção do sujeito é incompatível com o treinamento pragmático ou com o elitismo autoritário dos que se pensam donos da verdade e do saber articulado. (p. 48)
GESTO DO PROFESSOR
Às vezes, mal se imagina o que pode passar a representar na vida de um aluno um simples gesto do professor. O que pode um gesto aparentemente insignificante valer como força formadora ou como contribuição à do educando por si mesmo. Nunca me esqueço, na história já longa de minha memória, de um desses gestos de professor que tive na adolescência remota. Gesto cuja significação mais profunda talvez tenha passado despercebida por ele, o professor, e que teve importante influencia sobre mim. (p. 48)
Este saber, o da importância desses gestos que se multiplicam diariamente nas tramas do espaço escolar, é algo sobre que teríamos de refletir seriamente. É uma pena que o caráter socializante da escola, o que há de informal na experiência que se vive nela, de formação ou deformação, seja negligenciado. Fala-se quase exclusivamente do ensino dos conteúdos, ensino, lamentavelmente quase sempre entendido como transferência do saber. Creio que uma das razões que explicam este caso em trono do que ocorre no espaço-tempo da escola, que não seja a atividade ensinante, vem sendo uma compreensão estreita do que é educação e do que é aprender. No fundo, passa despercebido a nós que foi aprendendo socialmente que mulheres e homens, historicamente, descobriram que é possível ensinar. Se tivesse claro para nós que foi aprendendo que percebemos ser possível ensinar, teríamos entendido com facilidade a importância das experiências informais nas ruas, nas praças, no trabalho, nas salas de aula das escolas nos pátios dos recreios, em que variados gestos de alunos, de pessoal administrativo, de pessoal docente se cruzam cheios de significação. Há uma natureza testemunhal nos espaços tão lamentavelmente relegados das escolas. [...] (p. 49)
O que importa, na formação docente, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser "educado", vai gerando a coragem.
Nenhuma formação docente verdadeira pode fazer-se alheada, de um lado, do exercício da criatividade que implica a promoção da curiosidade ingênua à curiosidade epistemológica, e do outro, sem o reconhecimento do valor das emoções, da sensibilidade, da afetividade, da intuição ou adivinhação.
Conhecer não é, de fato, adivinhar, com intuir.
Paulo Freire, 1996.
https://formacaocontinuadacolaborativaept.blogspot.com/2019/03/pedagogia-da-autonomia-paulo-freire_12.html
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